domingo, janeiro 21, 2007

Das hipocrisias que proliferam neste país

Existem certos temas que eu não gosto de discutir nem desejava trazer ao blog. São temas que se tornam tão absurdamente ridículos pelo exagerado mediatismo que recebem e do que deles se diz que, em situações normais, até teriam alguma graça dado seu absurdo, não fosse o facto de se tratarem de casos bastante sérios e reais.
Um deles é o referendo de dia 11 sobre o aborto, que já me começa a enojar, dadas as constantes acusações, campanhas mediáticas, argumentos idiotas e agitares de bandeiras insconscientes que observamos todos os dias na comunicação social, na rua e, para minha grande desilusão, também por esta blogosfera fora. Queria evitar trazer aqui este tema mas, quando parece que se vai montando lá fora uma guerra entre duas frentes, começo a pensar que é impossível escapar-lhe. Mas não vai ser ainda hoje que falarei sobre o referendo. O que eu vinha hoje aqui falar era de outro caso que vem partilhando os rodapés dos noticiários de à uns dias para cá: o caso da prisão do 1º sargento Luís Gomes.
Recapitulando: temos um pai biológico, que abandonou uma criança e nunca se preocupou com ela, uma mãe biológica, sem meios para dar uma boa educação e garantir a felicidade da sua filha, e um casal de pais adoptivos, que decidiram aceitar essa criança como sua, dada para adopção pela sua mãe biológica. 5 anos mais tarde, o pai biológico, sem nunca ter mostrado um mínimo de preocupação e afecto pela filha, decide que quer ser pai e reaver a criança, mesmo sabendo que ela está a ser bem tratada, um bem-estar muito melhor do que ele alguma vez conseguiria dar.
Resultado: o pai biológico recorre aos tribunais e como estes só falam a língua da lei e não a da família, obrigam os pais adoptivos a entregar a criança ao pai que ela nunca teve nem nunca terá desejado ter, acusando os pais adoptivos de rapto, mesmo quando todos (incluindo a mãe biológica) sabem que esta decisão é errada e que o pai biológico só procura algum protagonismo e uma simpática indemnização (cerca de 30000€ mais todas as despesas do processo). Quanto aos pais adoptivos, cujo crime foi apenas amar a criança de outros como sua, a mãe encontra-se em parte incerta com a filha, enquanto que o pai, Luís Gomes, encontra-se detido. As últimas notícias indicam que Luís Gomes estará agora disposto a negociar a entrega da criança. Mas se ele gosta tanto da filha porque é que está agora a ceder?, poderão perguntar vocês. Pois, eu também não compreendia isso de início, mas compreendo que também eu não gostaria de estar preso por um crime que sei que não cometi.
Mas o que está aqui em questão é a paternidade da criança. Quem deve ser o pai? O homem que nunca quis saber dela e a abandonou ou aquele que a acolheu e educou? Ora, eu acho que ninguém minimamente consciente será capaz de responder o primeiro. Mas também podemos observar a questão do ponto de vista emocional da criança, nesta fase crítica do seu desenvolvimento: Quem é, para ela, o pai? Um estranho que a rejeitou e que não sabe como cuidar dela ou a pessoa que conhece desde que se lembra e que trata como "pai"? Mais uma vez, acho que ninguém poderia responder o primeiro. A isto acresce um factor possivelmente mais importante que o de qual é o pai: com a família adoptiva ela tem uma mãe.
Mas o pai biológico, o seu advogado e os tribunais decidiram que deve ser ele o pai. O pai biológico até que não tem muita culpa: é só mais um sacana como muitos outros que por aí andam a fazer pela sua vida (independentemente dos danos colaterais, ou seja, do bem-estar da criança). O advogado também não tem muita culpa: só está a fazer aquilo para que lhe pagam e, pelos vistos, este caso não lhe tira o sono (independentemente dos danos colaterais, ou seja, do bem-estar da criança). Já os tribunais, são inteiramente culpados! É a eles que compete aplicar a Justiça, Justiça que deve ser imparcial e equilibrada. E não é a Justiça um dos pilares fundamentais de um Estado de direito, livre e democrático, o último recurso que um cidadão dispõe quando algo está verdadeiramente errado?
Pois é, e quando a Justiça falha, isso quer dizer que estamos em muito maus lençóis, meus amigos. À muito tempo que ando a dizer que "confio muito nas nossas polícias, agora nos nossos tribunais...", e não fosse este não ser um caso de polícia, mais uma vez esta frase se justificava plenamente. E porque é que isto acontece? Porque os tribunais respondem a leis, leis essas que são dogmáticas e inflexíveis. A ética e a moral não entram no discurso da Justiça, ela limita-se a decidir entre o certo e o errado com base em pressupostos fixos e imutáveis e não lhe compete ponderar os efeitos das suas decisões. E se os juízes não respondem à ética e à moral, não vão ser de certeza os simples oportunistas e advogados a fazê-lo.
Todos nós vemos que esta decisão é errada. E é verdade que errar é humano, e que são homens que fazem as leis e presidem aos tribunais. E é por isso que certas leis têm que ser mudadas e certas decisões têm que ser repensadas e revogadas. E se se assiste a tanta mobilização social neste país, mobilização que é partidária e anónima, para mudar uma lei que é a da interrupção voluntária da gravidez, porque é que ninguém mostra a mínima vontade de querer corrigir o erro judicial que se está a fazer no caso da criança que está prestes a ser separada dos seus verdadeiros pais? A resposta é bem simples e triste: pura hipocrisia! Porque a questão do aborto serve para ganhar votos e a da paternidade não. Porque certas questão são mais mediáticas e outras não. Porque o aborto faz mexer muito dinheiro e a paternidade não. Porque numa questão que divide o país se vai insistir em fazer um referendo que só o irá dividir ainda mais e numa questão que reúne o consenso de todos não. Ou, se quiserem uma resposta mesmo hipócrita, porque sim!
Descobri hoje uma petição da PetitionOnline contra a lei que levou à prisão do 1º sargento Luís Gomes. Eu sou manifestamente crítico em relação aos movimentos que recorrem à PetitionOnline, já que estas petições pela internet não têm reconhecimento jurídico. No entanto, sempre que a causa é justa, eu não resisto e junto sempre o meu o nome a estas iniciativas. Já parece que faz parte da minha personalidade ser um lutador pelas causas perdidas... Mas lá fui eu assinar também a petição, até que reparei que antes de mim só mais 5 pessoas a haviam ainda assinado! Antes de trazer a palavra "hipocrisia" de novo à baila comparando esta afluência com a de certas iniciativas fúteis que se encontram na PetitionOnline, resolvi pensar melhor e dar-lhe o benefício da dúvida pois não sei à quantos dias ou horas ela lá foi colocada. Mas se se verificar a reduzida afluência, então estamos mesmo definitivamente em maus lençóis e este país começa já a cheirar mal de mais, tal é o avançado estado de podridão. Se estão solidários com esta petição, assinem-na aqui.
Raramente se encontram aqui no Dentro e fora posts tão longos, críticos e sérios como este mas, face a esta vergonhosa situação que aqui tratei, não podia ficar calado. Normalmente costumo usar o blog para descontrair com uma piadolas e bitaites acerca disto ou daquilo, deste ou daquele, ou dando a conhecer alguns gostos pessoais mas desta vez, como meio de comunicação que a blogosfera se tornou, tinha que transmitir aqui esta mensagem. Esperemos que no futuro eu só tenha que vir ao blog para deixar umas piadas.
E será uma pena que eu tenha que voltar a falar aqui deste caso.

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