sexta-feira, fevereiro 09, 2007

Ah, o referendo!

Este Domingo é dia de referendo ao aborto, o que quer dizer que amanhã será supostamente o "dia de reflexão" e hoje é, então, o último dia em que se falará abertamente do tema. Isto contando que, ganhe quem ganhar, ambos os lados se respeitarão democraticamente (o que não tem acontecido até aqui) e finalmente teremos sossego depois de quase três meses de acusações e manipulações de parte a parte, seja na comunicação social, nas ruas e, pasmem-se (ou não), até e sobretudo na blogosfera.
As raras vezes em que trouxe a questão do referendo aqui ao blog foram apenas para ridicularizar e expôr o absurdo de certos promotores de campanhas. Nunca utilizei o blog para expor ou promover a minha escolha e também não será hoje que o farei.
Isto leva-me à primeira questão que queria aqui tratar: as inacreditáveis campanhas que foram feitas para este referendo. Desde santas a chorar, a argumentos falaciosos, mentiras descaradas e meias verdades, tivemos a oportunidade de assistir a tudo, de ambos os lados. O que deveria ser uma campanha eleitoral livre e democrática começou a transformar-se num autêntico campo de batalha onde faltou sobretudo o respeito e consideração em relação a quem pensa de maneira diferente, esquecendo-se que, se temos ainda uma coisa que é só nossa e é verdadeiramente livre, essa coisa é o nosso pensamento e pensar livre e diferentemente (ainda) não é crime (apesar de, cada vez mais, o mundo que George Orwell esboçou em Nineteen Eighty-four começa a tentar manifestar-se...). E o respeito pela liberdade de pensamento começa a ser afectado logo a partir do momento em que se formam partidos e partidários que levam a cabo campanhas que recorrem a tudo (insultos e mentiras, sobretudo) para conseguir a adesão do outro, pois em democracia é a maioria que tem e dá o poder. Cada indivíduo é livre e dono da sua própria decisão e não deve ser, de maneira nenhuma, influenciado por outros, ainda mais quando ambos os lados desta disputa afirmam que o que está em causa é uma coisa tão grave e pessoal como a interrupção voluntária de uma gravidez. Pois se é uma decisão assim tão grave e pessoal, deixem que cada um reflicta e tome a sua decisão livremente e não arrastem convosco pessoas que certamente estarão mal esclarecidas e que ouvem apenas a versão de cada um dos lados e não o problema no seu todo. E com isto tudo chegamos a uma triste e irónica reflexão: existirá movimento mais anti-democrático que a partidarização?
Outra questão que eu queria aqui tratar já foi sugerida no último parágrafo. Trata-se da informação e esclarecimento dos indecisos, ou, mais propriamente, a falta dessa informação e desse esclarecimento. Porque, meus amigos, informação não é expor os casos da mulher A que abortou e agora é mais feliz/infeliz ou da mulher B que não abortou e agora é mais feliz/infeliz, não é dissertar interminavelmente sobre a metafísica do ser vivo dentro do ventre materno nem é discutir a ira divina que recai sobre quem faz isto ou aquilo. Informar e esclarecer é pôr literalmente em pratos limpos, sem partidarização nem demagogias, o que está realmente em jogo neste referendo. Trata-se, sem rodeios nem artifícios, de uma proposta de alteração a uma lei do actual código penal. O problema, e é aí que começa a confusão e consequente desinformação, é na pergunta que foi colocada para votação. A pergunta não é, como muita gente pensa, "Concorda com o aborto? Sim ou não?"; infelizmente a pergunta não é assim tão simples (se assim fosse, penso que, tirando quem lucra com o aborto, a totalidade da população responderia "não") e tem que ser lida com muita atenção. A pergunta é, na verdade, a seguinte: “Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada por opção da mulher, nas primeiras dez semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?” Já não é assim tão simples, pois não? Lendo com mais atenção, verificamos que são aqui feitas quatro perguntas, a saber:
1 - Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez?
2 - Concorda que a despenalização da interrupção voluntária da gravidez deve ser feita unicamente por opção da mulher?
3 - Concorda que a despenalização da interrupção voluntária da gravidez seja feita até ao prazo das primeiras dez semanas de gestação?
4 - Concorda que a despenalização da interrupção voluntária da gravidez seja feita em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?
Se para a primeira e última questão cada pessoa não deverá ter muitas dúvidas, já para as outras duas a situação complica-se. Agora, a estas quatro questões, relacionadas sim, mas distintas, é pedido ao eleitor que responda apenas com uma de duas opções: "sim" ou "não", independentemente do eleitor concordar ou discordar de um, dois ou três dos quatro pontos (na verdade, decomposta a questão, acho díficil encontrar alguém que diga "sim" ou "não" a todas). O descrédito que têm recebido aqueles que acusam a pergunta de ser enganadora é apenas mais um exemplo da desinformação que tem sido levada a cabo pelas várias campanhas. A isto acresce o facto de muita gente ainda ignorar a composição da lei actualmente em vigor e quais as excepções nela previstas. E quantas vezes assistimos nós a comunicações que visam esclarecer estas entrelinhas, que mais não são as partes que somadas resultam no todo? Muito poucas vezes, diga-se sinceramente e, com frequência, embora começando por parecer imparciais, acabam por se revelar tendenciosas.
O terceiro ponto que eu queria aqui salientar era o papel do governo de José Sócrates que, não só mentiu como é cobarde. José Sócrates fez da revisão da lei do aborto uma bandeira de campanha para chegar ao governo e, lá chegando e com maioria absoluta na Assembleia da República, não aprovou de imediato a lei como prometera, lavando as mãos ao empurrar a decisão para um referendo, pois o medo do veto do inquilino de Belém era grande demais e já à bem pouco tempo vimos um governo a ser demitido por um Presidente da República. Apenas mais uma mentira no meio disto ou, na verdade, a mentira que tudo começou. O mínimo que este governo poderia fazer era comprometer-se a realizar um novo referendo dentro de mais nove anos para que isto acabe de vez à melhor de três, tal é a brincadeira que parece ser a realização de um referendo neste país.
Para terminar, irei por fim emitir a minha opinião pessoal em relação ao referendo, sem nunca revelar ou propagandear qualquer tipo de partidarização. Gostaria, muito sinceramente, que a vitória deste referendo não fosse nem para o "sim" nem para o "não": no dia 11, a vitória deveria ir para a terceira via, o voto em branco. Não um voto em branco que revela indecisão e rejeição de responsabolidades, muito pelo contrário; este voto em branco representaria uma decidida manifestação de protesto, de insatisfação e descrédito no sistema político e nos eleitores que não sabem viver em democracia, pois as bases da liberdade cívica e do direito democrático estão podres neste país e o lixo mediático em que se transformou esta campanha é apenas a ponta visível do icebergue. Bem que eu gostaria de castigar o sistema político e alguns dos eleitores com um voto em branco, mas ao fazê-lo, receio desperdiçar assim o que poderá ser um "voto útil". Ainda estou neste momento na dúvida entre o branco e aquela que à muito tempo é, para mim, a escolha que considero o "mal menor" e só quando estiver na dentro da cabine de voto me decidirei definitivamente.
Sou contra a abstenção e, se aqui faço algum apelo é que vão todos votar no dia 11, seja em que quadrado for, com ou sem cruz, pois quem não reconhece o papel de estar em democracia, não merece dela fazer parte. Mas a democracia também não é um sistema político perfeito. Nunca o foi nem nunca o será, mas cabe a cada um de nós tentar melhorá-la um pouco participando dela. Como diria Winston Churchill nas suas sábias palavras, "a democracia é a pior forma de governo imaginável, à excepção de todas as outras que foram experimentadas".
A minha decisão é minha e a vossa é vossa, não desejo partilhá-la nem publicitá-la, não o façam também. Votem em consciência, por vós e não por outros.
E como está quase na meia-noite vou-me calar. Veremos depois o que haverá a dizer dia 12.

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