quarta-feira, junho 28, 2006

Memórias de uma prospecção (XV e penúltimo)

O vox pop em Arqueologia
Quem já fez prospecções arqueológicas deve saber que, antes de se ir para o campo, deve-se consultar determinadas fontes de informação que podem orientar o nosso trabalho. Em primeiro lugar a base de dados do IPA (enquanto existir) por sítios arqueológicos já referênciados na nossa área, de seguida a Carta Militar de Portugal 1:25000 que pode sugerir bons sítios para haver ocupação humana pela topografia e hidrografia, e, at last but not the least, o vox pop.
O vox pop (ou, mais correctamemente, o vox populi, a "voz do povo") é um dos recursos mais importantes quanto estamos numa região que não nos é familiar e procuramos identificar sítios arqueológicos porque, convinhamos, não somos nós que chegamos da cidade que conhecemos melhor aqueles montes do que aquela gente que provavelmente nunca saiu de lá. É por isso que devemos, sempre que possível, perder (ou ganhar) umas horas de trabalho fazendo uma ronda pelas aldeolas da região e perguntando à população local se se lembram de ouvir falar de sítios antigos, ou de histórias sobre aqueles montes que tenham passado de geração em geração, ou se sabem de terrenos onde tenha aparecido à superfície cerâmicas e coisas estranhas quando lá foram feitas lavras.
Além da informação propriamente dita que nos é útil para o nosso trabalho (de facto, durante a altura do Carnaval, identificámos mesmo um sítio inédito depois dos locais nos terem aconselhado a ir lá dar uma espreitadela), este contacto com os "nativos" também proporciona certos e determinados momentos únicos nascido do diálogo com aquela gente simpática mas com um fortíssimo provincialismo (que, de resto, só lhes fica bem e lhes dá identidade). No fundo é como se fosse um trabalho de Antropologia social, em que partimos para o campo para falar com os velhinhos. E, tirando os mais desconfiados que olham sempre para nós, gente jovem, como se ali estivessemos para desencaminhar as suas filhas para Lisboa, a maior parte é mesmo muito simpática e adora conversar se puxarmos por eles (até nos quizeram oferecer uma rodada de cervejas!).
É claro que a maior parte das coisas que ouvimos não são nada na realidade, mas existem certas pérolas e tiradas monumentais que, por si só, valem a pena a deslocação e o tempo dispendido. Isto além de fazermos uma data de amigos! Ficam aqui as mais engraçadas, sendo que todas começam, depois dos cumprimentos e identificação da praxe, com algo como "Ah e tal, e coisas antigas por aqui, sabe de alguma coisa? Telhas e cacos, coisas assim?".
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Prospector: Ah e tal, e coisas antigas por aqui, há?
Nativo/a: Coisas antigas? Então mas isso não serve para nada! Quem é que quer coisas antigas? Deixem-se disso!
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P: Bom dia! Nós somos arqueólogos que andamos por aqui a fazer blá, blá, blá... Sabe-me dizer se por aqui têm aparcido coisas antigas nos campos, como telhas e assim?
N: Ah, desculpe mas eu não sei de nada. E mesmo que soubesse não podia dizer porque tenho muitas dores.
P: Mas, mas...
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P: Ah e tal, e coisas antigas por aqui, há?
N: Isso eu não sei. Só sei é que tenho a melhor cama de ferro do distrito lá em casa! Até já cá veio gente de museus para tentar comprá-la mas eu nada!
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P: Ah e tal, e coisas antigas por aqui, há?
N (grupo de velhotes): Olhem, as únicas coisas antigas por aqui somos nós! Só se vocês nos quiserem levar a nós! Eh, eh!
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P: Então e não se lembram de histórias antigas sobre aqui esta região?
N (grupo de velhotes): Olha, eles querem ouvir histórias! Ó Fulano X (chamando outro velhote atraído pelo rebuliço na aldeia, só comparável às últimas campanhas eleitorais para a Junta), chega lá aqui e conta aí umas anedotas aos jovens!
N (Fulano X): Então vocês querem ouvir anedotas, é? É que eu sei de algumas, eh, eh!
P: Err... Deixe estar, deixe estar... Nós até estamos com pressa...
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P: Ah e tal, e coisas antigas por aqui, como telha espalhada nos campos, há?
N: Não, minha menina, isto por aqui é tudo muito limpinho. (minha menina porque eu não estava metido neste diálogo , sublinhe-se)
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P: Ah e tal, e não há por aí sítios onde apareça muita telha partida?
N: Olhe, eu quando mudei o meu telhado o ano passado, deitei as telhas velhas para acolá. Só se lá for ver. Está lá tudo partido!
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P: Ah e tal e não sabe se apareceu por aqui restos de telha, ou pedras esquisitas ou coisas assim?
N: Olhe, ali para detrás daqueles montes, há lá um sítio onde aparecem umas pedras estranhas, assim com uns biquinhos, assim... Uns biquinhos assim, assim... (enquanto esfregava os dedos indicador e polegar como que revivendo os tempos de juventude em que não havia seio feminino na aldeia que se escapásse às suas mãos)
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E foram estas algumas das melhores respostas que tivemos do nosso vox pop feito no interior transmontano. Fica o conselho para os futuros arqueólogos nunca substimarem o poder da sabedoria popular que, se em alguns casos nos pode ajudar realmente no nosso trabalho, nos outros pode-nos fazer passar uns bons momentos e soltar umas gargalhadas - gargalhadas a posteriori, porque nem queiram saber o esforço tremendo que tinhamos que fazer para não nos desmanchar-mos a rir ali na cara deles (sobretudo neste último caso e no da cama de ferro) e tentar manter uma conversa séria e interessada até mesmo quando o tema já divergiu totalmente do inicial e já haja quem se chegue à frente para contar anedotas aos mais novos.
P.S.: Resolvi passar algumas das "Memórias de uma prospecção" menos interessantes mais à frente e esta série encaminha-se vertiginosamente para o seu final. Esperem só mais um post daqui a uns, a pièce de resistance final.

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